sexta-feira, 5 de março de 2010

Gomorra - Livro


O livro Gomorra foi escrito por Roberto Saviano, atualmente jurado de morte pela máfia italiana chamada Camorra. O Sistema, como a Camorra é conhecida entre os membros, é considerado um dos grupos mafiosos mais fortes e influentes do mundo, com negócios por toda a Europa e parte da Ásia, importadores de drogas vindas da América do Sul e com conexões nos Estados Unidos. A brincadeira entre os nomes Gomorra e Camorra é evidente, mas a escolha também se explica em um dos últimos capítulos, quando Saviano conta a história de um padre que resolveu enfrentar os mafiosos. O autor viveu na região de Nápoles, o que possibilita uma visão bem singular dos fatos, uma chance em mil. Ele era próximo de alguns personagens camorristas do livro, cresceu ouvindo as histórias sobre a violência do grupo e vivenciou várias delas. Seu pai, por exemplo, foi espancado por tentar salvar uma das vítimas da Camorra, que acho sangrando em uma estrada. Trabalhava em ambulância, o ferido precisava de ajuda. Ele o levou para o hospital. O certo seria esperar os assassinos voltarem e terminarem o serviço, para só então recolher o corpo. O livro fala muito dessas leis invisíveis que não competem ao estado, mas ao mundo do crime. Todos sabem quais são e quebrá-las tem conseqüências graves, o que explica a falta crônica de testemunhas para crimes de assassinato.

Aproveitando que os clãs da Camorra são verdadeiras máquinas capitalistas e têm negócios dos mais diversos, Saviano divide o livro de acordo com suas áreas de atuação e momentos importantes da história da máfia, como guerras internas ou prisão dos chefões. O leitor fica sabendo que os vestidos das grifes italianas que circulam por todo mundo e vestem as atrizes de Hollywood são feitos em fábricas clandestinas controladas pela Camorra. Que o cinema influenciou muito mais a máfia do que a máfia o cinema. Que o sul da Itália é um verdadeiro aterro de lixo tóxico e dejetos perigosos, contaminando as terras e o ar a ponto de elevar em 20% o câncer na região.

“Quando uma bala chega, você cai no chão e não respira mais, abre a boca e puxa o ar, mas não entra nada. Não consegue mesmo. São como socos no peito, que parece que estouram. Mas depois a gente se levanta e volta tudo ao normal, e isso que é importante. Depois da queda, você levanta”.

Quem espera algum glamour, esqueça. Nesse ponto filme e livro são coincidentes. Esse não é um romance de Mario Puzo, como o filme também não é Cidade de Deus. A máfia que conquista os jovens napolitanos é uma máquina de fazer dinheiro para os que têm tino comercial e uma máquina de fazer cadáveres para os que só sabem puxar o gatilho. Não há um esforço de Saviano para empurrar um livro em uma só direção. Ele destaca tanto a crueldade quanto o ridículo das situações, tanto a ausência do estado quanto a luta dos carabinieri. A realidade é plural e assim ele a retrata, por mais surreais que possam parecer certos acontecimentos.

“As grifes da moda italiana só começaram a protestar contra o grande mercado das falsificações, gerido pelos cartéis de Secondigliano, depois que a Antimáfia descobriu todo o mecanismo. Até então, não tinham planejado nem mesmo uma única campanha publicitária contra os clãs, nunca tinham feito denúncias (…). Denunciar o grande mercado significava renunciar para sempre à mão-de-obra barata que utilizavam na Campânia”.

Das histórias do livro, duas me chamaram mais atenção. As menos sangrentas e mais cinematográficas. Um jovem bebendo no bar ainda em estado de êxtase por ter experimentado pela primeira vez um AK-47. Seu encantamento é tanto que ele consegue férias de um mês na Camorra para viajar até a Rússia para conhecer Kalashnikov, o inventor da arma. Leva uma mozarela para o velinho, presente do chefe do clã, e volta com dezenas de fotos autografadas para distribuir aos conhecidos. Lá na casa de Kalashnikov, pelas paredes, fotos de crianças que foram batizadas com o nome de seu invento ou corruptelas do mesmo. Uma homenagem dos pais ao invento que mais matou pessoas no mundo, mais do que a AIDS ou desastres naturais, segundo o autor.

“Quando alguém vê tanto sangue pelo chão, começa a apalpar-se para conferir se não está ferido, se naquele sangue não está também o seu; inicia-se uma ânsia psicótica para assegurar-se de que não se está machucado. E mesmo assim não se acredita que um só homem possa ter tanto sangue, pois seguramente o seu próprio corpo possui muito menos”.

A outra história, na verdade um breve parágrafo, fala da apreensão da Camorra quando veio o tsunami. O maremoto revelou “centenas de tambores entupidos de detritos perigosos ou radioativos” enterrados pela Camorra nas praias da Somália nas décadas de 1980 e 1990. Foi supostamente a necessidade de ajuda humanitária que desviou a atenção da mídia para o ocorrido. Força dos fatos comentada, vale dizer que Gomorra também tem um lado mais literário que Saviano deixa escapar em alguns começos ou términos de capítulo, e desse aspecto não gostei.

O autor usa de metáforas desnecessárias para ter certeza de que o leitor entenderá o drama. Quando passa os dedos na marca de bala do AK 47 na vitrine de uma loja, por exemplo, ele faz uma comparação mais ou menos assim: como um verme entrando e saindo dos buracos. Essas e outras figuras imagéticas acabam sendo infantis diante da força do relato. Para mim, a parte pseudo-poética foi entediante e podia ter economizado algumas folhas ao livro. Veja só:

“Dom Peppino escavou uma trilha na encosta das palavras erodidas pelas escavadeiras da sintaxe, aquela força que a palavra pública, pronunciada claramente, podia ainda se permitir”.

Livro e filme têm uma diferença importante: no filme, as artimanhas de roteiro e direção foram descartadas para que não haja um clímax vindo da linguagem cinematográfica. Nem diretor nem roteirista dizem em que cena ficar mais ou menos chocado. Quando respirar ou se desesperar. Existem as imagens, pedaços de história, e nada mais. Se há algum clímax, é o espectador que irá determiná-lo. Quem vê escolhe sua cena mais forte. No livro, Saviano tenta mostrar ao leitor o que é mais impactante. Talvez seja um reflexo verdadeiro do que o afetou mais profundamente, mas que atrapalha o andamento da leitura. É como dizer “morreu uma menina de quatorze anos. Quatorze anos. Quatorze!”, como se as outras mortes não fossem relevantes. É provável que os que acharam o filme monótono gostem desse artifício. Não foi o meu caso.

“O melhor modo de esconder as armas é mantê-las nos quartéis. (…) os fuzis, dessa vez, vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam nas laterais o símbolo da OTAN. Grandes carretas roubadas das garagens americanas que, graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália”.

Concluindo, Gomorra é um livro fundamental para decifrar a mecânica do crime organizado e que ajuda muito a entender as entranhas do capitalismo global. Talvez tão relevante quanto O mundo é plano, de Thomas Friedman.

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Eric Novello é escritor e roteirista, formado no Instituto brasileiro de audiovisual - Escola de cinema Darcy Ribeiro.
Comprei esse também... deve valer muito a pena... depois eu escrevo uma crítica sobre o livro!

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